“Dentro do nosso mandato, o Banco Central Europeu está preparado para fazer tudo que for preciso para salvar o Euro. E acredite: vai ser suficiente."
Mario Draghi[1]
Na carta mensal que publicaremos semana que vem, faremos nossa discussão trimestral de desempenho do fundo para esse primeiro trimestre de 2020. Elaboramos, então, esta versão extra da publicação para complementarmos a visão apresentada mês passado à luz dos drásticos desenvolvimentos do mês de março, tanto em termos da pandemia do novo coronavírus, como em termos das ações de política econômica. Como nossos leitores bem sabem, temos defendido há anos que a crise pela qual passa o Brasil tem claros traços de recessão de balanços. O alto endividamento de pessoas físicas e empresas causou uma longa e intensa queda de atividade, e a retomada vinha sempre frustrando as expectativas. As recessões de balanços são conhecidas e bem documentadas na literatura. A maior delas sem dúvida foi a grande depressão da década de 1930, mas o fenômeno também ocorreu em episódios recentes de forma localizada (México na década de 1990, Japão nos últimos 40 anos) e global (crise de 2008/2009). Apesar disso, antes da crise deflagrada pela epidemia do coronavírus, existia enorme resistência em se admitir que esse diagnóstico poderia se aplicar à economia brasileira. Por conta de termos mantido essa perspectiva, ao longo do tempo nossa visão a respeito do crescimento econômico, inflação e juros se mostrou mais correta que o consenso de mercado. Nos últimos anos acreditamos que o crescimento do PIB não seria muito maior do que 1%, sempre achamos que a inflação permaneceria muito baixa e que o Banco Central continuaria cortando os juros ou retomaria o ciclo mais adiante. Este ano, mesmo antes da epidemia do novo coronavírus, não foi diferente. Achávamos que a atividade não passaria muito de 1%, que a inflação seria inferior a 3% e que o BC teria de voltar a reduzir os juros em duração a uma taxa ao redor de 3% a.a. Em recessões como essa, cria-se um ambiente fortemente deflacionário, o que permite e também exige que o Banco Central de cada país seja agressivo no processo de afrouxamento monetário de forma a impedir uma recessão crônica, como observado no Japão ou uma depressão econômica como a da década de 1930. Esses fenômenos poderiam ter se repetido nos EUA e em boa parte do mundo desenvolvido não fosse a atuação forte e corajosa do Fed. O então presidente do banco central americano, Ben Bernanke, teve a força de propósito para tomar medidas jamais vistas para tirar a economia americana do ciclo vicioso depressivo, como descrito em sua autobiografia “Courage to Act”[2]. O mesmo pode ser dito de outros banqueiros centrais contemporâneos ou posteriores como Mario Draghi no Banco Central Europeu, Merving King, no Reino Unido, James Carney, no Canadá à época, Janet Yellen e Jay Powell, do próprio Fed.
A atuação desses banqueiros centrais levou ao aprendizado que destacamos em nossa última carta mensal no discurso da diretora Lael Brainard do Fed[3]:
“A evidência sugere que [as políticas] foram menos eficientes quando houve atraso na sua implementação. [...] Em alguns casos, […] foram implementadas somente após longos atrasos e debates.” “[...] para que a política monetária seja efetiva, será fundamental que as autoridades monetárias [...] se comprometam a fornecer a acomodação necessária até atingir de forma sustentável a meta de inflação e o pleno emprego.”
Ou seja, Bancos Centrais que foram ágeis e resolutos em suas ações tiveram muito mais sucesso em salvar seus países de uma longa depressão e retomar o caminho do crescimento econômico. Nos EUA em 2008, os juros foram rapidamente levados a zero, e formas inéditas e vultosas de estímulo monetário foram implementadas com celeridade. Com o tempo, o país foi reencontrando o caminho do crescimento. Já no Japão, ao longo dos últimos 40 anos, as taxas de juros eventualmente chegaram ao mesmo nível que nos EUA, mas de forma demorada e reticente, e algumas vezes contraposta por apertos fiscais. Naturalmente, essa forma não trouxe resultados satisfatórios. Os bancos centrais bem sucedidos também tiveram a capacidade de manter as taxas de juros de prazos longos em patamares reduzidos, e não somente as taxas de juros curtos. A comunicação dessas autoridades monetárias convenceu os agentes econômicos que não haveria risco inflacionário futuro, e que, portanto, os juros permaneceriam baixos por um longo período. Em outras palavras, não basta cortar a taxa básica de juros, é preciso que toda a estrutura a termo fique em patamares reduzidos, que a chamada “inclinação” da curva de juros não fique excessivamente elevada. As taxas de juros do crédito concedido a pessoas e empresas depende dos juros ao longo de toda a curva, e não apenas da taxa base. O mundo descobriu, assim, o poder colossal que os bancos centrais têm em ambientes desinflacionários. Não só foi possível cortar e manter as taxas de juros baixas ao longo de toda a curva, como também usaram seus balanços para comprar ativos mais longos, injetando dinheiro e confiança em economias com problemas de empoçamento de liquidez, excesso de endividamento e perda de capacidade para consumir e investir. Um efeito colateral não intencional mas extremamente bem-vindo das políticas acomodativas foi o reestabelecimento, no curto-prazo, da solvência de países extremamente endividados. Obviamente isso não é uma solução estrutural para o endividamento crônico, mas é sim uma salvaguarda importantíssima para a solvência de no médio prazo. Dívidas públicas elevadas são impagáveis a taxas de juros altas, mas são sustentáveis por algum tempo com os juros em zero. Compra-se um importantíssimo tempo, que permite a aplicação de políticas fiscais genuinamente contracíclicas. Na última década, o que permitiu a estabilidade da dívida pública em diversos países não foram reformas ou disciplina fiscal, por mais que essas atitudes sejam corretas em tempos de pujança. O que manteve temporariamente a solvência desses países foi, inegavelmente, a queda crônica das taxas de inflação que exigiu uma brutal redução das taxas de juros por um longo período. O que estava ocorrendo no Brasil previamente à eclosão da pandemia do novo coronavírus era a chegada dessa doença desinflacionária, que vinha assolando o mundo desde 2008. Como viemos de uma total desancoragem de variáveis nominais, talvez o único aspecto econômico positivo da crise pela qual passamos foi a queda da inflação de incríveis 12%a.a. para o patamar de 3%a.a. A partir daí, no entanto, a relação custo/benefício da queda adicional das taxas de inflação muda radicalmente. Não queremos, nem podemos ter inflação de 2% ou 1% pois, nesses patamares a inflação é um sintoma da mesma doença de crescimento do mundo advinda do excesso de alavancagem sendo digerido. A atuação do Banco Central, nessa nova situação, deveria ser de deixar claro que não iria permitir a instalação de um processo deflacionário. E é nesse contexto de armadilha deflacionária que a economia brasileira se vê diante do choque da pandemia. Os Bancos Centrais e governos de todo o mundo têm reagido fortemente para mitigar os efeitos devastadores da doença em termos de perda de vidas, pânico e colapso econômico resultante das medidas de combate ao contágio. O objetivo dessas ações é mitigar a forte tendência de empoçamento de liquidez que pode virar uma enorme crise de crédito. Por mais conservador que seja um empresário, ele certamente não resiste a uma cessação completa de suas receitas enquanto ainda tem de honrar seus compromissos como aluguel, folha de pagamentos, capital de giro empatado em estoques, pagamentos de juros e tributos, entre outros. Certamente baixar juros não vai impedir a contração abrupta da atividade, muito menos ajudar no combate direto à pandemia. Trata-se, porém de uma atitude necessária ainda que não suficiente para dar algum fôlego à economia. O argumento de que quedas de juros não são suficientes é verdadeiro. Mas são o ponto de partida indispensável, sobre o qual vêm todas as outras atitudes financeiras. Como mencionado anteriormente, é o estímulo monetário, ao reduzir o custo de financiamento da dívida pública, que vai permitir uma correta reação fiscal num ambiente deflacionário: aumento temporário, mas muito significativo, do suporte governamental à área da saúde, às pessoas que tiverem sua renda reduzida ou interrompida e às empresas que precisam sobreviver à quarentena. O choque do coronavírus no Brasil vai, portanto, causar o colapso de um nível de atividade que já vinha anêmico, jogando a variação do PIB para o território amplamente negativo e destruindo repentinamente milhões de empregos. Sob a perspectiva aprendida no combate à crise financeira global, acreditamos que a ação correta do Banco Central do Brasil envolverá:
Utilizar o enorme poder da autoridade monetária para trazer os juros nominais para zero e, se necessário, utilizar vigorosamente as reservas cambiais, agora incrementadas pelo swap de US$ 60 bilhões realizado com o Fed. Não faz sentido não utilizar o seguro no meio da calamidade.
Agir fortemente, de forma rápida e resoluta, única maneira eficiente em tempos de crise de confiança e empoçamento de liquidez
Sinalizar que a total ausência de pressões inflacionárias levará à manutenção da taxa de juros em patamares baixos por um longo período, de forma a reduzir a inclinação da curva de juros. Lê-se muito que o Brasil está com taxas reais próximas a zero, mas isso só é verdade para prazos curtos. Em prazos longos, a taxa real de juros ainda era superior a 4% a.a., mesmo antes dos movimentos recentes de stops de posições nos mercados. Agora passa de 5%, chegando até 6%. A ação do Tesouro Nacional de dar liquidez aos títulos de longo prazo é aqui também necessária e complementar, mas é a manutenção dos juros em patamares reduzidos que permitirá a reação fiscal necessária para combater o coronavírus.
Precisamos, sem dúvida, permanecer na boa rota de modernização do país através de reformas que diminuam o tamanho e aumentem a eficiência do estado. Mas reformas são demoradas e de difícil negociação, ainda mais quando não se pode nem realizar reuniões presenciais. Por outro lado, as reformas já realizadas pelos governos Temer e Bolsonaro deram ao país o espaço fiscal de curto prazo que será necessário para lidar com essa crise, desde que adequadamente respaldado por uma política monetária coerente. Com a taxa de juros em zero e a curva de juros desinclinada, o custo de financiamento das medidas fiscais será muito reduzido. Para combater uma crise da dimensão desta que se avizinha, não basta cortar os juros de forma lenta, cautelosa e sinalizando interrupções associadas a receios inflacionários futuros. Em tempos inflacionários, decisões conservadoras de política monetária contribuem para a desinclinação da curva de juros, mas em momentos de crises que podem gerar depressão econômica, atitudes hesitantes aumentam o nível de incerteza dos agentes e os fazem exigir prêmios de risco excessivos nos mercados de juros longos, levando as taxas a níveis estratosféricos e contraproducentes. Com o nível de reservas disponível, não é necessário nem desejável que o Banco Central divida sua atuação monetária entre combater um processo deflacionário e combater a desvalorização cambial. O Brasil foi, ao longo do tempo, se livrando de todas as amarras que tinha para poder perseguir de forma livre sua meta de inflação. No passado, já tivemos câmbio fixo, déficits insustentáveis em conta corrente, escassez de reservas cambiais. Fomos nos livrando de tudo isso a um enorme custo financeiro para dar ao Banco Central a liberdade de perseguir sua meta sem ruídos e distrações. Esse enorme poderio tem de ser usado tanto no mercado cambial quanto nas decisões de política monetária, e isso torna hoje o Banco Central o ente mais importante do país. Quando o país estava disfuncional, os atores mais importantes eram políticos: Michel Temer, Eliseu Padilha, o Congresso Nacional, mais recentemente, Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia. Eles foram muito bem assessorados por Henrique Meirelles, Paulo Guedes, Ilan Goldfajn, Mansueto Almeida e toda equipe de tecnocratas competentes e de impressionante espírito cívico. Porém, feita a recondução do Brasil ao mundo da boa gestão econômica, da seriedade política e da ancoragem das expectativas, o Banco Central passou a ser o ator dominante.
A queda consistente da inflação de 12%a.a. em 2015 para abaixo de 3%a.a. registrados nos núcleos correntes deve ser reconhecida e celebrada. Mas já havia um risco se formando mesmo antes da eclosão da pandemia: a queda adicional das taxas de inflação a partir desse patamar reduzido não é mais motivo de comemoração. O processo deflacionário deixa de ser reflexo da boa gestão política e econômica e passa a ser um sintoma da doença que assola o mundo e que, com 7 anos de atraso, infectou o Brasil: baixo crescimento e desinflação.
Acreditamos que o Banco Central já está no caminho de ter essa percepção e, quanto antes utilizar seu arsenal para cumprir a enorme responsabilidade que lhe recai sobre os ombros, mais contribuirá para evitar que a pandemia do coronavírus jogue o país em uma rota de estagnação crônica. Acreditamos que a autoridade monetária cortará os juros de maneira forte, rápida e resoluta e utilizará as reservas cambiais para evitar que a desvalorização cambial gere pânico e atrapalhe a condução da política monetária no curto prazo. Não há tempo a perder e não há munição a preservar. É hora de o Banco Central liderar o movimento, trazendo a taxa Selic temporariamente para zero, permitindo uma taxa nominal longa ao redor de 3% e, aí sim, uma taxa real de juros de longo prazo próxima a zero. Como no caso de Ben Bernanke em 2008 e Mario Draghi em 2012, é preciso “Coragem de Agir”.
[1] “Within our mandate, the ECB is ready to do whatever it takes to save the Euro. And believe me, it will be enough”, https://youtu.be/tB2CM2ngpQg , acesso em 25/03/2020
[2] https://g.co/kgs/SWhB9S [3] https://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/brainard20200221a.htm , acesso em 24/3/2020.
Equipe Persevera.
(11) 4780-3794
Comments