“Triunfam aqueles que sabem quando lutar e quando esperar.”
Sun Tzu¹
Desde a divulgação da última ata do Copom, formou-se um consenso entre os investidores de que a autoridade monetária estaria na iminência de iniciar uma elevação da taxa Selic que reduzisse o grau “extraordinariamente elevado” de estímulo. De acordo com os preços de mercado correntes2, a probabilidade de elevação da taxa Selic na reunião de março é de aproximadamente 90%. Nesta carta, argumentamos que as informações hoje disponíveis justificam que o Banco Central pudesse aguardar um pouco mais antes de iniciar a redução dos estímulos. Com os dados de atividade e inflação que estarão disponíveis na reunião de maio, a autoridade monetária poderá decidir de forma mais informada se o balanço entre os fatores inflacionários e desinflacionários justificam a elevação dos juros.
Um regime econômico maduro
Apesar de alguns erros ao longo do caminho, é possível argumentar que as instituições macroeconômicas evoluíram muito nas últimas três décadas. Antes da adoção do regime de câmbio flutuante, o Banco Central precisava utilizar a taxas de juros para estabilizar o fluxo de dólares, independente do que ocorria com a atividade econômica. Mesmo após a adoção do regime flutuante e das metas de inflação, a chamada restrição externa – a necessidade de frear a economia por conta de elevados déficits em conta corrente – mantinha a taxa de juros refém das flutuações na taxa de câmbio. O nível cronicamente reduzido de reservas internacionais agravava ainda mais a situação.
Hoje, no entanto, a situação confortável das transações correntes e o elevado nível das reservas internacionais permitem a execução de uma política monetária independente, voltada apenas a atingir a meta de inflação. Mesmo assim, a forte desvalorização do Real e a elevada volatilidade da moeda brasileira criaram uma percepção generalizada de que os juros estão no patamar errado. Por essa visão, o Banco Central deveria elevar a Selic para controlar essa volatilidade, mesmo que o cenário de inflação e atividade econômica não justificassem esse movimento.
De fato, o Real foi uma das moedas de pior desempenho entre os emergentes desde o fim de 2019. Por sempre ter sido uma moeda de maior risco, o Real tende a se desvalorizar mais que os pares em momentos de aversão ao risco como o de 2020. Mas a perda de valor da moeda brasileira foi aproximadamente 15% maior do que a tendência histórica justificaria, como indicado no modelo abaixo, uma regressão da moeda brasileira contra o Índice de moedas de mercados emergentes do JP Morgan.
Nossa visão, no entanto, é que o desempenho negativo do Real se deve muito mais ao prêmio de risco exigido da moeda brasileira por conta da percepção de insustentabilidade fiscal. Não é uma pequena elevação dos juros que vai atrair novamente o fluxo de capital especulativo que deixou de entrar no Brasil com a queda de mais de 10 pontos percentuais da Selic nos últimos anos. Mais do que isso, o arcabouço institucional e a credibilidade da política monetária permitem que o Banco Central utilize as reservas internacionais como ferramenta para redução da volatilidade cambial, decidindo o nível da taxa de juros exclusivamente pelas perspectivas de inflação e atividade.
Além da questão do câmbio, a percepção de que a Selic está num patamar completamente errado deriva da comparação histórica. Os juros de 2% são sim muito baixos em relação ao que foram no passado, mas isso não quer dizer que estão no patamar errado. Desde a Crise Financeira Global, o mundo tem convivido com baixas taxas de juros inéditas, sem que isso tenha levado a um processo inflacionário. Pelo contrário, como argumentamos em nossa carta de janeiro, a manutenção dos juros nesses patamares foi necessária para combater a doença desinflacionária:
“Após a Crise Financeira Global de 2008/2009, os estímulos sem precedentes dados pelos Bancos Centrais e governos também fizeram inúmeros analistas e investidores preverem a perda de controle sobre as taxas de inflação. Novamente, o que se viu foi o oposto: o Fed – Banco Central Americano – e as demais autoridades monetárias não conseguiriam elevar as taxas de inflação para o nível desejado. O mundo vive desde então um processo desinflacionário crônico, ao qual o Brasil se acoplou após o abandono, em 2015/2016 da Nova Matriz Macroeconômica.”
Esses juros muito baixos, por vezes negativos, não se mostraram inflacionários e, ao nosso ver, os receios de aumento excessivo das taxas de inflação no mundo se mostrarão novamente infundados. No Brasil não é diferente: embora em relação ao passado a Selic esteja baixa, o processo desinflacionário requer esse novo nível de taxas de juros.
Repique ou processo?
Na ata de sua última reunião de política monetária, o Fed – banco central americano – chamou a atenção para os fatores temporários que elevarão a inflação nos próximos meses:
“[será] importante abstrair de fatores temporários afetando a inflação – tais como níveis baixos de preços saindo das medidas anuais de variação ou aumentos de preços relativos em alguns setores sujeitos a restrições de oferta – para julgar se a inflação está no caminho certo para exceder moderadamente 2% por algum tempo.”
Em outras palavras, na decisão de política monetária, o Fed será cauteloso em não tomar por permanente uma elevação transitória nas taxas de inflação causada pelo efeito base e pela alta nos preços de commodities. No Brasil, esses efeitos inflacionários transitórios também vêm ocorrendo com força desde meados de 2020. No mercado de bens, quatro forças contribuíram para uma aceleração da inflação: 1) o aumento temporário de demanda decorrente do pagamento do auxílio emergencial, 2) um baixo nível de estoques na indústria, que se preparou para uma redução da procura num contexto de restrições de mobilidade, 3) a forte desvalorização do câmbio e, mais recentemente, 4) uma elevação de preços das commodities em dólares. No caso dos preços de serviços, as grandes quedas dos meses de março a maio sairão das bases de comparação anual, o que também causará um aumento temporário dessas medidas de inflação, ainda que decorrentes apenas da gradual normalização desse setor.
Como sempre, o Banco Central deve combater os efeitos inerciais de choques inflacionários, acomodando o impacto primário nas bandas ao redor da meta de inflação. Nesse sentido, embora as medidas de núcleo da inflação tenham aumentado, essa tendência deve se reverter ainda no primeiro semestre. Mais do que isso, apesar da elevação dos núcleos de inflação, o patamar desses índices ainda está bem abaixo do centro da meta. A média dos núcleos acumula variação de apenas 3,01%, e a variação dos preços dos serviços subjacentes foi de 2,74%, contra uma meta de 3,75% em 2021.
Do lado da atividade, as condicionantes são ainda mais desinflacionárias. Esperamos que o crescimento do PIB em 2021 fique bem abaixo da mediana do Focus, hoje em 3,29%[1]. Em primeiro lugar, o término do pagamento do auxílio emergencial vai contrair de forma importante a demanda por bens, como já se pode perceber nos dados de vendas no varejo de dezembro. Essa medida desabou 6,1% na comparação mensal, o pior dado da série excetuando-se o auge das restrições de mobilidade em 2020.
Além disso, as parcelas adicionais do benefício assistencial neste ano representarão uma pequena fração do que foi pago ano passado. O Brasil viverá, assim, uma contração fiscal de 6,7 pontos percentuais do PIB, a maior desde o início da série história. Isso colocará grande pressão sobre a demanda das famílias, principalmente as de mais baixa renda
Pelo lado dos serviços, a demanda também deverá continuar fraca. A piora significativa da situação da epidemia de coronavírus voltou a exigir restrições de mobilidade, que deverão interromper a recuperação que vinha ocorrendo nesse setor. Como a vacinação ainda caminha de forma lenta, é possível que a reabertura econômica só ocorra de forma mais robusta no segundo semestre.
A fraqueza nos serviços se reflete diretamente na taxa de desemprego, que ficou em 14,7% em janeiro na série com ajuste sazonal calculada pela MCM Consultores Associados. Esse é o maior nível da história, agravado ainda pelo número de pessoas fora da força de trabalho como consequência das restrições de mobilidade. Ajustando por esse fator[1], o desemprego situa-se em incríveis 19,5%, conforme cálculo da consultoria BRCG. Em outras palavras, a capacidade ociosa no mercado de trabalho é uma das maiores nos últimos anos, e continua representando uma força desinflacionária relevante.
Por fim, as estatísticas mensais de crédito de janeiro também já começaram a sofrer os efeitos do fim dos programas emergenciais. Como mostra o gráfico abaixo, a média de concessões diárias para pessoas físicas mostrou desaceleração de impressionantes 9 pontos percentuais desde outubro/2020.
Os benefícios de aguardar
Por todos esses motivos, acreditamos que o Banco Central poderia manter a taxa Selic constante em sua reunião de março. Isso permitiria à autoridade monetária acumular mais dados antes de promover a retirada do “grau extraordinário de estímulo” que indicou em sua última ata. É verdade que a comunicação do Banco Central até o início de fevereiro parecia indicar que o início deste ciclo de elevação ocorreria apenas em maio. Com a piora nas condições financeiras globais, no entanto, os preços de mercado indicam uma probabilidade de cerca de 90% de elevação dos juros na próxima reunião.
Como o Banco Central sempre comunica, as decisões de política monetária devem ser tomadas de forma parcimoniosa, o que ao nosso ver quer dizer aguardar mais uma reunião. Até lá, acreditamos que é possível que os dados de atividade e núcleos de inflação estejam tão fracos que a autoridade monetária reconsidere a necessidade do movimento de alta. O mercado financeiro tende a dar peso excessivo para os movimentos de curto prazo nos dados e nos preços. Por isso, como colocado por Sun Tzu na citação desta carta, acreditamos que o Banco Central tome uma melhor decisão se aguardar o momento adequado, que acreditamos ser a reunião de maio.
[1] https://www.pensador.com/sun_tzu_frases/, acesso em 26/02/2021
[4] Fonte: BCB, 26/02/2021
[5] A chamada taxa de participação
[6] “it was important to abstract from temporary factors affecting inflation—such as low past levels of prices dropping out of measures of annual price changes or relative price increases in some sectors brought about by supply constraints or disruptions—in judging whether inflation was on track to moderately exceed 2 percent for some time.” ― https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/fomcminutes20210127.htm, acesso em 22/02/2021.
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